quinta-feira, 4 de março de 2004



Aborto
Paulo Portas a favor da despenalização

Obrigando, através de um acordo pós-eleitoral com o PSD, à disciplina de voto de todos os deputados da maioria em favor da penalização das mulheres que abortem, Paulo Portas nem sempre foi um homem de “convicções” tão firmes nem um tão acérrimo “defensor da vida”, criticando mais de uma vez o “discurso primitivo” do PSD sobre o aborto.
No início da sua carreira jornalística, recentemente saído da JSD, Paulo Portas via mesmo com preocupação a “transferência do poder político para o poder religioso”, ou o discurso primitivo e desinteressante com que o PSD tratava as questões éticas ou morais, como o aborto.”
Mais, para Paulo Portas, “a AD não tem a menor autonomia de discurso, já se não pede de voto, nem de vontade, em relação à Igreja, e limita-se a repetir o que esta diz,a presenciar o que esta proclama”.
Deixamos, aqui, as citações de 3 artigos de Paulo Portas, no jornal “Tempo”:

“O Poder por que Sá Carneiro pugnou era isso mesmo: pretendia o civilismo como alternativa actual à militarização que a nossa política sofre e consome; assentava na laicização da sociedade política, e em especial das vontades decisórias, para contrariar a arcaica, e paralisante, dominância religiosa (…).Repare-se, também, que a passagem de uma dominância religiosa para uma vertente laica da sociedade política, não era, em si, um ataque à Igreja Católica. Baseava, apenas, a carência de autonomia da consciência nacional em relação a quaisquer elementos fixativos, naturalmente avessos à mudança. Ninguém queria fechar os púlpitos, queimar as imagens ou proibir Fátima. A questão punha-se noutros moldes: tratava-se de iniciar a tolerância numa sociedade limitada, de realizar a abertura que os países-modelo também disfrutam, na moralidade, nas ideias. (…) Não é ligeireza reparar que a AD perdeu o seu património inicial, em material ideológico [civilismo, laicidade e europeismo]. Dos três objectivos enunciados, não resta senão, por cada um deles, o compromisso que desbarata a esperança, a substituição perigosa, ou a permanência agravada dos atrasos. (…) Quanto ao poder laico, e livre, da política, é clara uma transferência do poder político para o poder religioso. É sintomático que as grandes discussões a que, desde há tempos, o País assiste tenham subjacente uma jaez militar ou religiosa. Progressivamente é essa a duplicidade institucional que ordena, solidifica. Do último ponto de vista dois exemplos recentes adensam a preocupação já expressa: por um lado a competição política, provinciana, que já se vislumbra e decerto crescerá, à volta da visita do Papa a Portugal. Pelo rumo que o facto leva vamos assistir naquele que devia ser um acontecimento pastoral e moral de extrema importância, a um jogo turvo de influências, para que saiba quem convidou, quem esteve mais minutos com Sua Santidade, quem mais o acompanhou, quem ganhou os seus louros. O segundo tem que ver com o tom ‘Cro-Magnon’ com que a questão do aborto tem sido tratada entre nós. (…) a AD não tem a menor autonomia de discurso, já se não pede de voto, nem de vontade, em relação à Igreja, e limita-se a repetir o que esta diz,a presenciar o que esta proclama. Os socialistas dividem-se entre a sua história e a história que a Igreja quer que eles façam. Só por referência lembre-se, por exemplo, que em França foi uma liberal, assumida como tal, da maioria giscardiana, a senhora Simone Weil quem, contra os mais conservadores e os mais ortodoxos, impôs a lei do aborto. Lá, os socialistas não tiveram dúvidas. Giscard, líder da maioria, não interferiu. Quer isto dizer, uma vez mais, que somos subdesenvolvidos; e que, no caso, andamos atrasados, à direita e à esquerda. A menos que se rejeite a Europa moral e apenas se queira a Europa económica…”.

“Não tem nada a ver com a Europa um país em que o discurso da social-democracia sobre as questões morais se limita a dizer que o aborto é a restauração da pena de morte. É próprio dos mais conservadores dentro dos conservadores, e sul-americano concerteza. Não tem nada a ver com a Europa que a livre iniciativa seja um palmarés deixado vazio, preterido pelas fáceis e dóceis concessões às corporações fácticas. É próprio dos Estados sobretudo confessionais e não de sociedades civis dinâmicas. Não tem nada a ver com a Europa que se regrida a ponto de substituir o acto livre e consciente, por isso pleno e sublime de escolher uma religião, pela imposição de um princípio de obrigatoriedade, por isso sem elevação, nas escolas, de uma confissão. É próprio do passado.”

“Nesta coluna não deixei de fazer notar divergências a uma série de atitudes e propostas que não se coadunavam com princípios modernos de relacionamento entre a sociedade, o Estado e as instituições. Assim se fez quando o Governo anunciou a concessão de um canal de Televisão à Igreja; assim se fez quando surgiu na maioria um discurso primitivo e desinteressante a propósito das questões éticas ou morais, como o aborto, mais afeito a ‘slogans’ que à percepção de um problema que não é fechado; assim se fez, recentemente, a propósito da reintrodução da obrigatoriedade das aulas da religião e moral nas escolas, por considerar-se a escolha religiosa um acto só sublime quando livre.”

Reprodução dos jornais em PDF
4 de Março de 1982, pg.8, Tempo, “Civis, Laicos e Europeus”
12 de Maio de 1982, pg.8, Tempo, “A Europa Mora ao Lado”
20 de Maio de 1982, pg.8, Tempo, “O Fascínio de João Paulo”

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